O desenvolvimento da fibra de vidro e do que hoje chamamos de “compósitos”, por suas características singulares e seus usos quase ilimitados, simplesmente mudaram o mundo… para melhor.
Na navegação, características como rigidez, força, resistência à abrasão e, principalmente, nunca apodrecer ou enferrujar, fez com que a fibra de vidro, de maneira muito rápida, substituísse a madeira, material tradicional na construção de barcos de recreio.
Os primeiros barcos de fibra de vidro, ou GRP – Glass Reinforced Plastic em inglês, foram fabricados nos Estados Unidos no final dos anos 40 inícios dos anos 50 e, desde então, vem sendo o material escolhido para a produção de milhões de barcos de recreio.
As vantagens de se usar a fibra de vidro na construção de barcos de recreio são muitas, contudo, voltando ao título deste artigo, é importante deixar claro que ainda não foi encontrada uma maneira de se reciclar a fibra de vidro, da qual, a principal matéria-prima, são as resinas de poliéster.
Madeira x fibra de vidro
Em termos gerais, se compararmos barcos semelhantes de madeira e de fibra de vidro, ou seja, lancha com lancha ou veleiro com veleiro, perceberemos que são muito similares. O maquinário e os sistemas são basicamente os mesmos e, o interior, também não é muito diferente, embora, o barco de fibra de vidro, se não possuir um interior com acabamento em madeira, contem mais materiais sintéticos. O que sobra é o casco e o convés, construídos de madeira naturalmente reciclável ou de fibra de vidro não reciclável.
Deixando claro de que cada material tem sua aplicação ideal, suas vantagens e suas desvantagens, é importante destacar que, a fibra de vidro, além de não ser reciclável (por enquanto), vai durar para sempre em sua forma original, mesmo sofrendo uma deterioração estrutural.
Claro, ambos materiais podem receber restaurações, contudo, reparos ou a simples prevenção da deterioração estrutural na fibra de vidro, inevitavelmente, requerem algum tipo de lixamento ou quebra da fibra de vidro, o que reduz o material a pó.
Este pó, tem suas próprias implicações ambientais e de saúde e, dado que a maioria dos estaleiros onde são feitas as restaurações fica perto da costa, o risco desses detritos encontrarem o caminho para o mar aumenta, levando à tão discutida poluição por plásticos e seus “efeitos” na vida marinha… sim, tudo isso é “efeito”, sendo, a “causa” do problema, a falta de processos “limpos” de reciclagem ou reutilização deste material.
O pó fino da resina e a fibra de vidro
Existem dois problemas resultantes do descarte ou da reciclagem de barcos de recreio construídos com fibra de vidro.
Um deles é o impacto causado pelos barcos abandonados e seu efeito na poluição, inclusive visual, do habitat marinho e dos estuários, manguezais, zonas costeiras e até dos arrecifes de corais, entre outros. Um barco de fibra de vidro abandonado vai durar para sempre em seu estado original, com pouquíssimas deformações estruturais, diferente de um barco construído de madeira que, com o passar do tempo, apodrece e desaparece.
O segundo, e provavelmente o mais prejudicial às pessoas e ao meio ambiente, contudo imperceptível, é o do “pó micro plástico fino” e das “minúsculas fibras” geradas quando o material é lixado, cortado ou seccionado durante o processo de reforma de um barco ou do seu descarte (quando é cortado em pedaços).
O pó fino, constituído basicamente de resina de poliéster, tende a flutuar, aumentando assim o nível geral de poluição plástica nos oceanos, enquanto, o componente da fibra de vidro, sendo mais pesado, se torna sedimento e se deposita no fundo do mar, onde provavelmente será ingerido por criaturas marinhas e por vários organismos.
Assim, o segundo, é o mais perigoso tipo de poluição; é aquela que existe, mas não se percebe ou não se vê e, por esse motivo, passa desapercebida.
Possíveis soluções para reciclar
O maior desafio para o setor náutico é a frota de barcos legada desde os anos 40, onde, além desta usar um material que não se sabe ainda como reciclar, nunca teve incorporado no seu design o conceito de reciclagem. Isso porque, barcos novos, podem ser mais bem projetados para uma eventual reciclagem ou destruição, contudo, dada a longevidade das embarcações, neste momento, precisamos encontrar soluções para os barcos mais antigos que estão chegando no final da sua vida útil.
Basicamente, hoje em dia, quando alguém quer se desfazer de um barco que não consegue passar adiante (vender), principalmente nos países mais avançados, as soluções utilizadas são: levar os pedaços de casco para um aterro (tem de cortar em pedaços antes), afundar em águas profundas, abandonar em algum lugar ou, como “imoralmente” acontece, principalmente com os grandes iates, incendiar para receber a indenização do seguro.
Infelizmente, nenhuma dessas “soluções” resolve o problema da poluição e não podem ser consideradas reciclagem. Todas causam danos ao meio ambiente já que o resultado dessas ações, com exceção do fogo que causa outro tipo de micropartículas poluentes, é a liberação do pó e das fibras mencionadas no meio ambiente.
A outra questão não muito discutida e específica do mercado náutico e que gostaria de destacar e deixar registrado, mas que não vou abordar neste artigo, é o nível de contaminação por outros agentes químicos, como os anti-incrustantes (tinta de fundo), óleos, silicones, gelcoats etc. Ou seja, a discussão do assunto da reciclagem ou da reutilização de substâncias ou componentes provenientes de embarcações é muito mais abrangente.
Contudo, o que anima é que todos os anos vemos mais ações e mais maneiras de reciclar ou de reutilizar os resíduos de compósitos de fibra de vidro, inclusive, com algumas ações bem-sucedidas e, mais recentemente, algum financiamento disponível para o desenvolvimento de ações ou soluções concretas de reciclagem através de fontes governamentais ou da própria indústria (Europa e Estados Unidos) náutica. Isso porque, a consciência sobre o problema existe e já entrou na pauta de alguns governos.
Abaixo, cito algumas das ações e soluções em teste, em estudo ou sendo implementadas para reciclar ou se desfazer das resinas e fibras de vidro sem que estas tenham um impacto negativo no meio ambiente:
- Método de circuito fechado de forno de cimento – Neste, os materiais residuais acabam como pó sinterizado na mistura de cimento como consequência da incineração a uma temperatura ultra alta;
- Quebra ou demolição de barcos – Neste, a quebra, geralmente cortando o barco em pedaços ou em pequenas secções com motosserras, são posteriormente enviados para um aterro;
- Leilão de barcos on-line – Neste, os barcos são leiloados por quase nada e ganham nova vida (ou sobrevida);
- Financiamento para reciclagem – Neste, a ideia é que os construtores de barcos adicionem uma “taxa” ao preço de um novo barco, que é acumulada em um fundo central para eventuais custos de descarte. A ideia é que as seguradoras de barcos também adicionem uma “taxa” semelhante ao prêmio anual do seguro, que pode ser acumulado e pago aos “recicladores” quando o barco chega ao fim da sua vida útil;
- Tornar as resinas e fibras de vidro em outros materiais – Neste, o conceito é baseado na teoria de não tentar separar a resina da fibra de vidro e sim, encapsular todo o material em sua forma granular, convertendo-o em uma matriz termoplástica e evitando que o material reciclado apresente os mesmos problemas de não reciclabilidade. Os outros componentes nesta matriz têm que vir preferencialmente de outro material residual de alto volume, como as embalagens de poliestireno expandido (isopor), outro material não reciclável. Esta combinação permite que uma mistura de grânulos termofixos (de barcos antigos, piscinas de fibra de vidro, pás de turbinas eólicas, caixas de isopor etc.) sejam incorporadas em uma matriz homogênea, que então formam um material de folha termoplástica. Isso pode ser usado em aplicações como móveis, pisos e tampos de cozinha, entre outros. (Veja Mario Malinconico – Italian Marine Association);
- Usá-lo como combustível – Neste, a ideia é queimá-lo em uma usina de resíduos para energia ou utilizá-lo para acionar fornos de cimento que contenham filtros para “limpar” a fuligem, e que utiliza a fibra de vidro e a resina química como fonte de combustível;
- Ênfase no design para desmontagem – Neste, a ideia é que os barcos sejam concebidos de maneira que possam ser desmontados (como um lego) e que as “peças” possam ser reutilizadas em outras aplicações, inclusive novos barcos, além, é claro, de que sejam construídos com materiais mais ecológicos.
Ter implementadas algumas dessas medidas nos próximos anos é fundamental, já que, estimativas recentes, sugerem que até 2025 teremos um aumento entre 10 e 15% na quantidade de resíduos de compósitos proveniente somente da indústria náutica, que inclui também outros tipos de embarcações como; pranchas, jet-skis, caiaques, mini-submarinos, entre outros, e, a partir de 2025, com a contínua obsolescência dos produtos legados, esse número aumentando nessa proporção (10 a 15%) a cada ano.
Contudo, apesar de todas estas ações e soluções serem maneiras de se “dar fim” e resolver o problema das resinas e das fibras de vidro existentes, problema que não é só gerado pelos barcos, mas por qualquer produto construído com a fibra de vidro (barcos representam cerca de 5% da quantidade total de resíduos de compósitos), “dar fim”, já não é mais ecologicamente correto. Isso porque, o conceito de reciclagem evoluiu da simples “decomposição das matérias e eliminação dos resíduos” para a “uma máxima reutilização das matérias existentes”, combinada com a necessidade de uma definição do “modelo de reciclagem já na concepção dos produtos”. Tudo isso, como decorrência da responsabilidade de se diminuir a exploração e a extração de novos materiais da natureza… ou seja, resumindo, apesar da “causa” ser de fácil compreensão e o “efeito” ser de fácil visualização, a “solução” é de difícil concepção e de “custosa” implementação… contudo, apesar de tudo isso, a boa notícia é que muito está se fazendo para se reciclar as resinas e a fibra de vidro.
Usei como fonte e vale a pena dar uma olhada em:
Sustainability Panel Session: End of Use Boats (vídeo youtube em inglês)
APER – L’Association pour la Plaisance Eco-Responsable (Associação para o Lazer Marinho Eco Responsável – website em francês)
Bons ventos!
Max Gorissen
Velejador. Escritor.

Artigo reproduzido da edição N° 9 da revista SailBrasil Magazine – março a agosto 2023 e com a autorização do seu autor e editor Max Gorissen – www.sailbrasil.com.br – Todos os direitos reservados.
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