Muitos anos de prática
Mas não se iluda: para chegar a esse ponto foram muitos anos velejando sozinho, aperfeiçoando a técnica de me integrar e de depender somente de mim para qualquer atividade ou eventualidade no veleiro.
Já testei de tudo velejando sozinho: desde diferentes ajustes de vela com diversos tipos de vento, até como ir ao banheiro em condições extremas de vento e de mar.
Tudo começou nos anos 1980, quando comecei a velejar na minha primeira prancha de windsurfe, uma Windglider, na Represa de Guarapiranga, em São Paulo. Lembro como se fosse hoje.
Naquele dia, ventava forte e eu velejava perto da Ilha dos Amores, quando, de repente, a prancha fica desgovernada. A popa não segue mais o rumo e gira, me obrigando a compensar com o corpo e a vela para não cair na água. Pensei de imediato: perdi a quilha. Fato constatado, sozinho, cansado após horas velejando, como era meu costume, comecei a pensar em como voltaria ao hoje extinto Clube Desportivo Municipal de Iatismo (CDMI).

Minha primeira prancha de windsurfe, uma Windglider.
Naquela época, eu ainda não tinha trapézio e velejava de dock-sider… era tudo no braço!
Depois desta prancha, vieram várias pranchas Raceborad e de Slalom, sempre velejando na represa de Guarapiranga ou na Ponta das Canas em Ilhabela.
No ano de 1992, fui campeão de Raceboard Masculino B na Semana Finasa de Vela e Campeão Paulista na classe Raceboard Masculino B.
Remar, nem pensar (quem teve uma Windglider e tentou remar com o corpo apoiado sobre o mastro/retranca/vela sabe como era desconfortável). Tinha de me virar para sair dali. Não havia chances de resgate, pois eu estava isolado naquela área da represa. Ir para terra, apesar de perto, não era uma opção. Lembro que pensei um pouco e a solução veio rápido: quando perdi a quilha, havia realizado vários movimentos com o corpo e com a vela para não cair na água. Ali estava a solução. Fiquei de pé na prancha, subi a vela e tentei manejar sua posição e seu ângulo, concomitantemente com a posição do meu corpo, para continuar velejando. Após algum tempo, consegui identificar os movimentos certos e, em ziguezague, com pequenos giros do corpo e do mastro sobre a bolina, movimentos que passaram a ser quase que naturais, velejei em direção ao CDMI.
Após umas duas horas, cheguei ao clube exausto e “quebrado”, por causa do movimento de corpo e de braços. No entanto, a sensação de chegar, sem assistência e sem depender de ninguém, utilizando somente meus próprios meios, foi o que me fez, naquele momento, amar velejar sozinho. Cheguei cansado, porém calmo e realizado.
Desde então, várias pranchas e veleiros depois, inúmeras foram as vezes em que passei por situações nas quais as coisas deram errado, mas, em vez de reclamar, encarei cada uma como uma nova lição. Muitas vezes o mesmo problema se repetia, até eu encontrar uma maneira de resolvê-lo. Não importa. Ter de achar uma solução e sair dessa sozinho é o que sempre me motivou.

Velejando sozinho no meu Hobby-Cat 16 de nome “Bad Max”. Represa de Guarapiranga – SP.
São poucos os velejadores solitários
Admiro muito todo velejador que deixa o píer para velejar sozinho. Principalmente para se aventurar pelo mar. Tanto faz se é apenas por um dia ou por vários deles.
Assim, não dá para escrever sobre velejar sozinho sem mencionar alguns velejadores que admiro, como Joshua Slocum, Bernard Moitessier, Éric Tabarly, Ellen MacArthur, Robin Knox-Johnston, além de brasileiros como Izabel Pimentel, Amyr Klink, Aleixo Belov, Elio Somaschini, entre outros.
O desafio de velejar sozinho
Velejar sozinho é um desafio, principalmente em alto-mar. Afinal, essa é uma atividade na qual o indivíduo é totalmente responsável por sua própria segurança: não tem a quem recorrer, nem é possível esperar alguém resolver um problema.
Por esse motivo, velejar sozinho é uma atividade de muita concentração e pouco descanso. Concentração no vento, no mar, no tempo, no movimento do veleiro… tudo tem de estar em harmonia. Pouco descanso porque não podemos nos dar ao luxo de dormir por oito horas seguidas – aliás, muitas vezes, nem por uma hora seguida –, o que causa exaustão até se acostumar (se é que dá para acostumar).

Além disso, velejar sozinho tem um grande impacto em nosso estado emocional, dados os inúmeros desafios mentais e físicos que precisamos enfrentar durante uma velejada.
Um exemplo bastante comum: durante uma ventania forte com mar desencontrado, o velejador normalmente assume o leme, pois não é possível manter o rumo no piloto-automático. Em pouco tempo, fica-se cansado por ter de ajustar constantemente o rumo, e com frio pelo vento batendo no corpo. E nesse momento não há ninguém para substituí-lo, para fazer um café quente ou trazer um sanduíche após horas no leme. Não dá para deixar o leme nem para um simples xixi. Esses são momentos em que precisamos estar bem mental e fisicamente para aguentar o desgaste, lembrando que não há outra saída. Não podemos parar no posto de combustível para descansar e comer ou fazer xixi, como em uma viagem de carro.
É nesses momentos que você percebe que depende única e exclusivamente de uma grande força de vontade interior. Quem não tem essa força padece.
Velejador solitário tem de ser prevenido
Muitas pessoas acreditam que indivíduos que gostam de velejar em solitário possuem uma inclinação natural ao perigo e precisam fazer algo perigoso para se sentir vivos, precisando muitas vezes chegar ao ponto de ter de lutar por sua sobrevivência para serem felizes.
Esclareço: esse não é o meu caso e, pelo que li, também não é o caso dos velejadores que destaquei acima.
Ao contrário, o velejador solitário abomina e evita situações de perigo. Quando ocorre uma situação de perigo, é porque fugiu ao seu controle. É porque não estava preparado ou não era possível prevenir.
É por isso que, quando velejo sozinho, tenho de acreditar e confiar plenamente em minha capacidade de gerenciar situações complexas e, principalmente, evitar ou prevenir qualquer tipo de situação que possa me colocar em perigo.
Para isso, antes de mais nada, mantenho meu veleiro sempre nas melhores condições. Faço pessoalmente e a tempo as revisões, as inspeções e os reparos necessários. Estudo e leio muito sobre tudo relacionado a veleiros, seu uso, navegação e equipamentos. Procuro sempre novas maneiras de me virar sozinho. Tudo é pensado de antemão e, se alguma peça não está boa, troco o mais rápido possível por uma nova ou superior.
Faço isso porque minhas ações preventivas, especialmente se acertadas, são a única maneira possível para evitar que um problema venha a acontecer.

Isso vai desde algo simples, como a troca preventiva de uma cupilha desgastada, até um problema que pode ocasionar um risco de vida, como a revisão das abraçadeiras das mangueiras por onde entra ou sai água pelo casco. Mas lembre-se: até uma cupilha solta pode acarretar um risco de vida (por exemplo, se a cupilha do brandal se soltar durante uma ventania, o mastro pode quebrar e cair). Tudo o que fazemos tem de ser analisado e ponderado como em um jogo de xadrez. Só então se move a peça.
Vale repetir: diferentemente dos velejadores com tripulação, quem veleja sozinho está disposto a assumir o desafio de ser totalmente dependente das suas próprias ações, contando com seu conhecimento, com os recursos à disposição, com as próprias experiências e, principalmente, com as próprias decisões.
Essa maneira de pensar é tão extrema para as pessoas em terra, condicionadas por um cotidiano de segurança, que a maioria a confunde com insensatez (quantas vezes escutei: “Você é louco por sair sozinho!”).
Sozinhos, devemos gerenciar a exaustão
Quem veleja sozinho está sujeito a um grau de exaustão mental e físico, muitas vezes causado por falta de descanso adequado, que ninguém em terra consegue imaginar. Mesmo assim, situações e problemas têm de ser analisados e decisões devem ser tomadas o tempo todo, mesmo nesses momentos em que se está mais vulnerável.
Imagine viver por longos períodos isolado e desconectado do mundo. Nem internet existe. Tudo depende de você. Não há ninguém para conversar (bom, tem gente que compra uma bola Wilson…). A solidão e o isolamento são reais. Não é como estar fechado em seu quarto, com sua família na outra sala. Em um veleiro, não há ninguém à sua volta, somente água. Mesmo dispondo de meios de comunicação como um telefone por satélite (o único que realmente tem alguma chance de pegar sinal no meio do mar), ainda assim você sabe que está sozinho.
Para quem não imagina o tipo de situações a que o velejador solitário está sujeito (na verdade, também estamos sujeitos a elas quando há tripulação, mas nesse caso podemos contar com a ajuda de outra pessoa), apresento aqui alguns exemplos de seus maiores temores: cair no mar e o veleiro ir embora, tropeçar numa catraca e quebrar um osso, bater a cabeça e desmaiar, o veleiro bater em algo (baleia, navio, contêiner, atol, pedra) e furar o casco, quebrar o mastro, rasgar velas, perder o leme, ficar sem energia elétrica e perder os instrumentos de navegação, vazar gás e incendiar o veleiro, bater em outra embarcação ao manobrar, entre muitos outros.
A possibilidade de todas essas situações contribui para exaurir suas forças, a ponto de, ao dormir, manter-se atento a qualquer barulho ou movimento fora do normal. Ou seja, quase não se dorme profundamente, por isso existe um aumento no grau de exaustão.
Para velejar sozinho é preciso aprender a viver de outra forma
A exaustão é um fato para o velejador solitário.
Seja por não dormir, pela solidão, cansaço físico, preocupação, desconhecimento do que está por vir, medo, saudade, seja porque tudo se mexe o tempo todo, porque os espaços são pequenos, entre muitas outras percepções, emoções ou preconcepções.
Mas quem vive essa aventura tem por premissa pensar que tudo isso precisa e pode ser prevenido e que, se acontecer, deve ser encarado como algo que pode ser resolvido ou, ao menos, gerenciado. Não existe a atitude ou o pensamento negativo. Não existe a premissa de que não se pode resolver. Não existe a concepção de que se está vencido. Tudo – tudo – pode ser resolvido com mais ou menos esforço e com os recursos disponíveis.
Tudo deve ser sempre encarado de maneira positiva. É pensando positivamente que se lida com a exaustão mental e física e, com o tempo, isso faz com que o velejador solitário se integre ao seu entorno e passe a descansar, relaxar e dormir. Ele chega ao ponto de fazer parte do meio em que habita e, a partir desse momento, passa a viver bem, alegre, relaxado e em harmonia. Ainda um pouco cansado, mas bem.
Ver as coisas com uma atitude positiva faz com que coisas negativas pareçam positivas.
Por exemplo: “muitas horas de solidão” passam a ser percebidas como tempo para pensar e meditar; “problemas” são situações para testar suas habilidades e conhecimento; “não ter internet” é oportunidade de ficar longe de coisas que nada agregam à sua vida; “não ter ninguém para ajudar” serve para você aprender a ser autossuficiente; “não ter um restaurante por perto” serve para aprender a cozinhar e viver uma vida mais saudável; “estar longe do agito de uma cidade” permite estar em contato constante com o mar, com o vento, com o sol, a lua e as estrelas; “pegar uma chuvinha” é para se refrescar e lavar a alma a cada tanto; “dormir ao relento” permite conhecer melhor as estrelas… Tudo o que é negativo passa a ser complementado com percepções positivas, percepções que somente quem se distancia da cidade consegue experimentar. Ser levado pela força do vento, experimentar o silêncio, conhecer lugares incríveis que quase ninguém visitou, mergulhar com golfinhos e peixes exóticos em corais deslumbrantes, poder nadar pelado…
Quando você alcança essa paz interior, só então, você passa finalmente a ser livre. É assim que me sinto quando velejo sozinho.
Bons ventos!
Max Gorissen
Velejador. Escritor.
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